Não, não vou falar das 12 baladas junto ao Tamisa, em que multidões rejubilam anualmente por ficarem mais velhas, nem do velhinho
Junghans da parede lá de casa, mudo e quedo desde 1944 por causa de tola superstição com que um destes dias terei de acertar contas; mas sim do relógio mais importante cá do burgo, que é como quem diz do relógio, ou melhor, do mais recente (1941, outra vez essa década!) dos relógios a que o Arco Triunfal da Rua Augusta tem vindo a dar guarida. Pode não parecer mas de facto, e como dizia outro dia um amigo, ele é o nosso “Big Ben”. Feito à nossa escala. Usufruindo dos poucos direitos e garantias do nosso tão tristonho património, mas nem por isso deixando de padecer de todos os seus males.
Faço-o porque me revolto quando o vejo e vejo como aqueles belos e pesados ponteiros estão constantemente desentendidos com o meridiano de Greenwich, ou simplesmente parados e a fazerem de conta, feitos bonecos de foto para turista acidental, duplamente espantado pelo estado lastimável em que o arco se mantém, década após década (estatuária a desfazer-se perigosamente, minúsculos “jardins suspensos”, etc.), e pelo desacerto crónico daquele relógio, indisfarçável sintoma de um povo.
Dupla revolta pois em 22 de Outubro de 2007 anunciaram-nos com pompa e circunstância, envolvendo até jantar de gala nos Jerónimos, o restauro daquela histórica máquina do tempo. Restauro feito com dinheiros de mecenas entusiasmados e provenientes da terra com que Welles, perdão,
Harry Lime, tão injusto foi em «O Terceiro Homem», dizendo que os suíços em 500 anos de paz e democracia apenas haviam produzido o relógio de cuco. Houve direito a loas e à edição restrita de 32 (os anos que o arco demorou a ser construído) relógios comemorativos do mecenato, os “Reverso Squadra Augusta”, em ouro e com o Arco gravado. Os governantes exultaram e anunciaram: o mecenato seguiria por protocolo para a relojoaria grossa de Coimbra e Porto, pois então.
Contudo, passados que estão 2 anos e 4 meses sobre a dita “inauguração”, a constatação de facto é de que tudo não passou de um logro, já que o relógio nunca funcionou regularmente. Neste exacto momento os antigos mecenas já se arrependeram de ter dado e feito o que deram e fizeram por estes ingratos cá de baixo. Mas neste exacto momento, também, não devem faltar ideias e projectos para acesso e usufruto público do interior do arco, talvez até alguém se lembre de abrir um quiosque lá no alto com vista para o Tejo. Relógio? Coloque-se um mecanismo digital, (h)ora!
In Jornal de Notícias (24/2/2010)